terça-feira, 26 de outubro de 2010

Peepli [Live] (2010) - पीप्ली लाइव

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Peepli Live (Peepli Ao Vivo) é uma sutil e sarcástica crônica da mais dura realidade indiana. Ao mesmo tempo, no entanto, é uma obra que consegue universalizar uma cruel ferida que, em verdade, é muito mais humana do que pensamos. O filme está na 34a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

É necessário que se diga, também, que Peepli Live é o quarto filme produzido pela Aamir Khan Productions. Isso significa algo muito especial dentro de Bollywood. O primeiro filme deles, Lagaan (2001), concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro; não ganhou, mas a indicação pela Academia foi um verdadeiro reconhecimento nas mudanças que o cinema indiano iniciava naquele momento. O segundo, Taare Zameen Par (2007), foi indicado pelo governo indiano pra concorrer ao Oscar, mas não foi selecionado. Ainda assim, embora não tenha sido selecionado pela Academia, muitos de nós já conhecemos os rumos que esse filme tomou no mundo; no Brasil, por exemplo, este já é o filme indiano mais visto de todos os tempos, somente no boca-a-boca. O terceiro, Jaane Tu... Ya Jaane Na (2008) foi somente uma incursão pelo entretenimento jovem, nada de especial. Até chegar agora Peepli Live e ser, novamente, a indicação do governo indiano para o Oscar.

O filme é a estreia na direção da até então jornalista Anusha Rizvi, que também escreveu o roteiro. Ela apresentou o projeto pela primeira vez a Aamir Khan em 2004, que recusou produzir já que ele estava muito mais preocupado com suas gravações em Mangal Pandey. Mas ela foi persistente, ficou no pé, explicou os detalhes e ele topou. O resultado eu aconselho que todos vejam, que vale a pena.

Peepli Live conta a história do camponês Natha (Omkar Das Manikpuri) e sua família, afundada em dívidas completamente impagáveis. A velha dificuldade do camponês em uma sociedade urbana, ainda que a população rural indiana seja algo em torno de 70%. Eles moram na fictícia vila de Peepli, no fictício estado de Mukhya Pradesh (que em hindi significa, literalmente, "Principal Estado").

Natha e seu irmão, Budhia (Raghuvir Yadav), voltam desolados pra casa com a notícia de que perderão tudo por causa de dívidas, depois de uma visita ao banco. A esposa de Natha, Dhaniya (Shalini Vatsa), e a mãe dos irmãos, Amma (Farookh Zafar), protagonizam momentos dos mais hilários - e angustiantes - do filme. Ilustram a mais indesejada relação de nora e sogra que se pode ter, numa casa de um cômodo, e a sogra, ainda por cima, nunca - eu disse nunca - saindo da cama. E no meio disso mais três crianças.

E é então que, pensando que o líder político local pudesse ajudá-los, Natha e Budhia acabam, isso sim, por receber um conselho nada encorajador: suicidar-se, pois assim a família receberia uma indenização decente. Discutindo sobre isso enquanto tomavam chá num local público, ambos são observados por um jornalista local, Rakesh Kapoor (Nawazuddin Siddiqui), que acaba por levar a notícia adiante.

Acontece que a coisa se espalha de maneira descontrolada e, em menos de dois dias, toda a mídia indiana monta barraca em frente à casa de Natha, à espera de um suicídio ao vivo. Mas o sensacionalismo descarado não se forma somente pela exploração de um coitado; a situação acaba por explicitar um debate político que, inevitavelmente, é nacional. É então que o filme toma seus rumos e Natha torna-se, sem querer e sem controle de nada, catalizador de um triste espetáculo que só uma sociedade dos princípios do século XXI poderia mesmo viver.

Consta que o próprio Aamir Khan faria o papel de Natha, mas sou obrigado a dizer que fico imensamente feliz de o desconhecido ator de teatro Omkar Das Manikpuri ter sido selecionado. A expressão de Natha é impagável.

A vontade aqui era de escrever mais detalhes da história, até seu final. Mas exerço meu autocontrole e faço um apelo pra que, quem tiver vontade, veja o filme.

Peepli Live até que é baseado em fatos reais, mas isso, nesta obra, não é o mais importante. Assusta e angustia ver uma realidade do outro lado do mundo tão próxima de uma realidade que - guardadas todas as proporções - poderia ocorrer aqui. 

O debate político do filme se aproxima desmedidamente do que estamos agora vivendo aqui no Brasil. E ainda, pra quem conhece um pouco mais a fundo da história da Índia recente (últimos cento e poucos anos), é praticamente impossível não lembrar de Gandhi relembrando John Ruskin e Tolstoi e o debate sobre a profunda importância do camponês; ou, também, não lembrar do livro "A Cidade da Alegria", de Dominique Lapierre, depois transformado em filme, com Patrick Swayze. Num país com um bilhão de camponeses miseráveis e cidades famintas por gente, a história ainda vai se repetir por muito e muito tempo.

Anusha Rizvi merece todos os meus parabéns por sua estreia no cinema, muito sensível e muito complexa. A produção da Aamir Khan Productions se faz óbvia em vários aspectos, como muitos figurantes, atores desconhecidos - à exceção de Naseeruddin Shah, que faz o ministro da agricultura -, cidade cenográfica e coisas afins. Impecável. O filme tem algumas imagens que falam muito por si; eu diria que coisas geniais, aliás. E a trilha do filme foi também composta pelos inusitados Indian Ocean, uma banda indiana de indo-rock, fusion e jazz-folk - é mais ou menos assim que eles se definem, mesmo.

Peepli Live foi o primeiro filme indiano a participar da competição oficial do Festival de Sundance, nos EUA, ganhou exibição especial no Festival de Berlim, e levou o prêmio de Melhor Filme de Estreia no Festival de Durban, na África do Sul.

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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Filmes indianos na 34a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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Queridos, na sexta-feira, dia 22 de outubro, tem início a 34a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, estendendo-se até o dia 4 de novembro. Durante essas duas semanas, como já vem sendo tradição, teremos alguns bons filmes indianos no repertório. E adianto, são imperdíveis.

Os filmes selecionados pra esse ano são: Peepli Ao Vivo (Peepli Live, 2010), Filmando Harishchandra (Harishchandrachi Factory, 2010), Udaan (Udaan, 2010) e Imagens em Processo (Chitra Sutram, 2010). Verei cada um e em seguida postarei meus comentários. Mas para já ir adiantando, gostaria de lembrar que Harishchandrachi FactoryPeepli Live foram as indicações do governo indiano para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2009 e 2010, respectivamente, sendo o segundo a mais recente produção da Aamir Khan Productions. E Udaan representou o retorno de um filme indiano na seleção oficial de Cannes, após sete anos, agora em 2010.

Confira abaixo os horários e locais de cada filme. Para saber sobre mais detalhes, clique no nome de cada filme para acessar as respectivas páginas no site da mostra.

Peepli Ao Vivo (Peepli Live, 2010)
22/10 - 21h - Centro Cultural Banco do Brasil
23/10 - 14h - Cine Livraria Cultura 2
24/10 - 19h - Cine TAM, Sala 4
27/10 - 14h - Cine SABESP


Filmando Harishchandra (Harishchandrachi Factory, 2010)
22/10 - 14h - Cine SABESP
30/10 - 18h40 - Cinemateca, Sala PETROBRAS
2/11 - 18h30 - Matilha Cultural
3/11 - 17h10 - Unibanco Arteplex 3


Udaan (Udaan, 2010)
22/10 - 18h50 - Centro Cultural Banco do Brasil
30/10 - 14h - MIS (Museu da Imagem e do Som)
31/10 - 17h30 - Unibanco Arteplex 4
1/11 - 19h - Cinemateca, Sala PETROBRAS


Imagens em Processo (Chitra Sutram, 2010)
22/10 - 14h - Unibanco Arteplex 4
24/10 - 20h20 - Unibanco Arteplex 5
26/10 - 14h - MIS (Museu da Imagem e do Som)
4/11 - 17h20 - Reserva Cultural 1

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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Lata Mangeshkar - लता मङ्गेशकर

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Talvez este site fosse mais simpático se ele tivesse sido iniciado, mais de dois anos atrás, com uma postagem sobre Lata Mangeshkar, provavelmente a mais importante personalidade da Índia ainda viva.

Num país em que o cinema rege a sociedade, num país em que a música rege o cinema, ser cantor de playback deste cinema é estar em um posto talvez mais sagrado do que os que estão os atores. Se os atores estão sujeitos às subjetividades e projeções de cada um, que os fazem ser amados ou odiados, os cantores costumam ser praticamente unanimidade entre o público, variando efetivamente muito pouco, mudando somente pelo gosto de tom de voz, harmonia etc.

Pois e ser cantor de playback do cinema indiano é saber que as músicas não são suas, ou, mesmo se forem compostas pelo próprio cantor (como são alguns dos casos das músicas de A.R. Rahman, ou mesmo do trio SEL), ainda assim as músicas são muito mais do filme e - ainda mais - serão dos atores e das respectivas cenas de dança em que estiverem inseridas, se estiverem.

E, pra começar, Lata (lê-se Latá) já tem sua importância por disputar com Asha Bhosle o recorde de maior número de gravações já feitas no mundo por um único cantor, segundo o Guinness. As coisas ficam ainda mais interessantes quando sabemos que Asha Bhosle é simplesmente irmã de Lata Mangeshkar, com apenas quatro anos de diferença entre elas. Mas Lata diferencia-se - daí sim - por ter criado todo um estilo de cantar posteriormente imitado e reproduzido nos últimos sessenta anos do cinema indiano, inclusive por Asha.

Bom, Lata nasceu no dia 28 de setembro de 1929 em Indore, no Madhya Pradesh, embora sua família seja originária do Maharashtra da região de Konkan, próximo a Goa (por isso o sobrenome terminado em "kar", comum nesta região do estado). Seu pai, Pandit Deenanath Mangeshkar, era já um ator de teatro e cantor clássico. Ao nascer, Lata foi batizada como Hridaya, mas seus pais mudaram seu nome após uma muito bem sucedida peça do pai, cuja personagem principal era Latika. Lata é a filha mais velha do casal e todos os outros, Asha, Hridayanath, Usha e Meena são também cantores e/ou compositores.

A lenda diz que (pausa: entendemos já que Lata é uma lenda, viva que seja, quase um mito) Lata aprendeu a cantar tão cedo que, no primeiro dia de aula, tomou o lugar da professora e começou a ensinar seus amiguinhos a cantar. Ao ser reprimida pela professora, foi embora e não quis mais voltar pra escola. Mas como todo bom mito, há outra versão da história que diz que ela não quis mais ir à escola porque não deixaram que ela levasse consigo sua irmã Asha, que era mais nova e deveria ficar em outra turma.

E quando Lata tinha 13 anos, seu pai morreu e ela ficou sem seu mestre. Mas foi nesse momento que um grande amigo da família, Master Vinayak, aproximou Lata do cinema, já na década de 40. Foi assim que, em 1942, ela gravou a música "Naachu Yaa Gade, Khelu Saari Mani Haus Bhaari", pra um filme em língua marathi chamado Kiti Hasaal, mas que no final das contas foi eliminado da edição final. Mas ainda no mesmo ano ela gravou outra música, "Natali Chaittrachi Navalaai", do filme Pahili Mangala-gaur, também marathi. Em 1945 Lata mudou-se pra Mumbai, justamente quando a produtora de Master Vinayak foi também para lá e passar a trabalhar efetivamente em Bollywood, com filmes em hindi.

Lá, Lata passou a ter aulas de canto indiano clássico com Ustad Amanat Ali Khan Bhendibazaarwale. No entanto, com a independência da Índia e consequente partição do país com o Paquistão, ele teve de se mudar para o recém-criado país muçulmano. Foi então que ela passou a ser treinada por Amanat Khan Devaswale que, embora também muçulmano, não mudou-se ao Paquistão.

Com a morte de Master Vinayak, em 1948, Lata passou a ser promovida por Ghulam Haider, que acreditava com todas as suas forças que ela se tornaria uma referência, embora houvesse muita resistência por sua voz tão fininha. Mas a resistência muito logo caiu por terra. Já nos anos 50, a voz de Lata aparecia nas músicas de imensos sucessos não só de Bollywood, mas como também em filmes das outras grandes indústrias de cinema indiano. E todas as outras cantoras que surgiam naquele momento, ou que vieram depois, assumidamente adotaram o estilo de Lata, fazendo de seu estilo, voz e harmonia, a verdadeira voz da música indiana.

Hoje, não existem dados muito precisos do número de gravações que Lata já fez, mas consta que, no mínimo, passam de 40 mil as músicas já por ela cantadas, em pelo menos 20 das tantas línguas que existem na Índia.

Recentemente, Lata praticamente não grava mais músicas para os filmes indianos, dando espaço às novas-já-consolidadas vozes. Em 2004, ela ganhou uma relativa projeção internacional por ter uma música gravada por ela, "Wada Na Tod", fazendo parte da trilha do filme estadunidense Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças ("Eternal Sunshine of the Spotless Mind"), originalmente gravada pro filme Dil Tujh Ko Diya, de 1987. Coloco abaixo essa música, com a cena do filme original.

E o trabalho de Lata foi reconhecido, no mínimo, por todas as condecorações que o governo indiano tem a oferecer. Foi o Padma Bhushan, em 1969, o Dada Saheb Phalke, em 1989 (este dado às grandes contribuições ao cinema indiano), o Padma Vibhushan, em 1999, e o Bharat Ratna, em 2001. Além destes de extrema importância, Lata recebeu outras dezenas de prêmios e reconhecimentos por seu trabalho.

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